E FEZ-SE ESCURO NA POESIA BRASILEIRA

Morreu nesta sexta-feira o poeta amazonense Thiago de Mello, aos 95 anos. De sua obra robusta e bela, destaco dois poemas: “Madrugada Camponesa, de 1965”, com o marcante verso “Faz escuro mas eu canto” e “Os estatutos do homem, de 1977”.

As duas obras, escritas durante a ditadura militar, são atualíssimas, e vale muito a pena lembrar um pouco do que nos dizem:

O verso “faz escuro mas eu canto” diz:

“Faz escuro mas eu canto,

porque a manhã vai chegar.

Vem ver comigo, companheiro,

a cor do mundo mudar.

Vale a pena não dormir para esperar

a cor do mundo mudar.

Já é madrugada,

vem o sol, quero alegria,

que é para esquecer o que eu sofria.

Quem sofre fica acordado

defendendo o coração.

Vamos juntos, multidão,

trabalhar pela alegria,

amanhã é um novo dia.”

A Ditadura Militar, em 1965, era ainda recém-nascida, mas seus efeitos já obscureciam os horizontes dos brasileiros, e o verso de Thiago de Mello pode ser visto como um chamamento ao povo brasileiro para fazer sua parte ao exortar “vem comigo, companheiro, a cor do mundo mudar”. Mais adiante continua a nos incentivar à luta por um amanhã melhor. “Vamos juntos, multidão, trabalhar pela alegria, amanhã é um novo dia”.

 Já, “Os Estatutos do Homem” também batizado como “Ato Institucional Permanente” foi escrito em 1977, 9 anos após o Ato Institucional nº 5, da Ditadura Militar, o famigerado AI-5 que mergulhou o Brasil em um dos períodos mais sombrios da sua história. Naquele poema Thiago de Mello corajosamente estabelece:

Os Estatutos do Homem

(Ato Institucional Permanente)

A Carlos Heitor Cony

Artigo I.

Fica decretado que agora vale a verdade.

que agora vale a vida,

e que de mãos dadas,

trabalharemos todos pela vida verdadeira.

Artigo II.

Fica decretado que todos os dias da semana,

inclusive as terças-feiras mais cinzentas,

têm direito a converter-se em manhãs de domingo.

Artigo III.

Fica decretado que, a partir deste instante,

haverá girassóis em todas as janelas,

que os girassóis terão direito

a abrir-se dentro da sombra;

e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro,

abertas para o verde onde cresce a esperança.

Artigo IV.

Fica decretado que o homem

não precisará nunca mais

duvidar do homem.

Que o homem confiará no homem

como a palmeira confia no vento,

como o vento confia no ar,

como o ar confia no campo azul do céu.

Parágrafo Único:

O homem confiará no homem

como um menino confia em outro menino.

Artigo V.

Fica decretado que os homens

estão livres do jugo da mentira.

Nunca mais será preciso usar

a couraça do silêncio

nem a armadura de palavras.

O homem se sentará à mesa

com seu olhar limpo

porque a verdade passará a ser servida

antes da sobremesa.

Artigo VI.

Fica estabelecida, durante dez séculos,

a prática sonhada pelo profeta Isaías,

e o lobo e o cordeiro pastarão juntos

e a comida de ambos terá o mesmo gosto de aurora.

Artigo VII.

Por decreto irrevogável fica estabelecido

o reinado permanente da justiça e da claridade,

e a alegria será uma bandeira generosa

para sempre desfraldada na alma do povo.

Artigo VIII.

Fica decretado que a maior dor

sempre foi e será sempre

não poder dar-se amor a quem se ama

e saber que é a água

que dá à planta o milagre da flor.

Artigo IX.

Fica permitido que o pão de cada dia

tenha no homem o sinal de seu suor.

Mas que sobretudo tenha sempre

o quente sabor da ternura.

Artigo X.

Fica permitido a qualquer pessoa,

a qualquer hora da vida,

o uso do traje branco.

Artigo XI.

Fica decretado, por definição,

que o homem é um animal que ama

e que por isso é belo.

muito mais belo que a estrela da manhã.

Artigo XII.

Decreta-se que nada será obrigado nem proibido.

tudo será permitido,

inclusive brincar com os rinocerontes

e caminhar pelas tardes

com uma imensa begônia na lapela.

Parágrafo único:

Só uma coisa fica proibida:

amar sem amor.

Artigo XIII.

Fica decretado que o dinheiro

não poderá nunca mais comprar

o sol das manhãs vindouras.

Expulso do grande baú do medo,

o dinheiro se transformará em uma espada fraternal

para defender o direito de cantar

e a festa do dia que chegou.

Artigo Final.

Fica proibido o uso da palavra liberdade.

a qual será suprimida dos dicionários

e do pântano enganoso das bocas.

A partir deste instante

a liberdade será algo vivo e transparente

como um fogo ou um rio,

e a sua morada será sempre

o coração do homem.

É curioso notar que os estatutos de Thiago de Mello têm 13 artigos, mais um artigo final e foi escrito no ano do 13º aniversário da Ditadura Militar. A coragem do poeta fica patente logo no segundo verso onde ele afirma que “Fica decretado que todos os dias da semana, inclusive as terças-feiras mais cinzentas, têm direito a converter-se em manhãs de domingo”. Foi numa terça-feira, 31/03/1964, que a Ditadura implantou o regime de terror no Brasil. No artigo 5, decretou o poeta que “Fica decretado que os homens estão livres do jugo da mentira. Nunca mais será preciso usar a couraça do silêncio nem a armadura de palavras.” A mentira que serviu de desculpa para a implantação do golpe e para tentar impor silêncio aos homens. Lá no Artigo VII Mello nos diz que “Por decreto irrevogável fica estabelecido o reinado permanente da justiça e da claridade. Sua coragem continua sendo destilada em cada um dos versos do poema, até que no “Artigo final” que eu penso ser o que ele imaginava para o então porvir, fica decretado que “Fica proibido o uso da palavra liberdade. a qual será suprimida dos dicionários e do pântano enganoso das bocas.”, ou seja, a partir daquele decreto a liberdade seria algo vivido por cada homem, e não apenas uma palavra de que fazem uso, a seu bel prazer, todos os que de alguma forma subjugam ou tentam subjugar seus semelhantes.

Thiago de Mello se foi, mas nos deixou lições sobre as quais precisamos nos debruçar e buscar forças para extirparmos da vida política brasileira, todos os que tentem ou tenham pretensão de tentar fazer retornar ao regime de arbítrio.


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